11.12.06
Nas Nossas Ruas ao Anoitecer…
Hoje, domingo, ao fim da tarde, fiz um percurso pedestre, mais demorado que o habitual, pelas ruas e avenidas de Lisboa. De imediato me acudiram à cabeça os versos do Cesário Verde, o nosso grande poeta do viver urbano, da nossa cidade, ex-capital de Império.
Quase não se encontrava ninguém nas ruas. Raros estabelecimentos abertos, mesmo nesta época do ano, comercial por excelência, muito longe do espírito daquele que lhe deu motivo. Na verdade, a figura de Jesus Cristo, desde há muito que se tornou em mero ícone, igual a muitos outros, ao lado do de Marx, Guevara ou Fidel, por exemplo, desligado já, por completo, do seu sentido original e profundo.
A última vez que ainda terá movido multidões, jovens sobretudo, foi nos anos 60 do século XX, quando os Hippies da Califórnia o adoptaram como seu símbolo, liberal e condescendente com ousados usos e costumes, complacente ou até cúmplice com as práticas dessa mocidade, então irreverente, que recusava o Sistema, o Establishement, ao mesmo tempo que preconizava o regresso à simplicidade da Natureza.
Dessa imensa corrente espiritual ou mística, que depois se espalhou pelo mundo inteiro, com particular acolhimento aqui na Europa, restam hoje escassos resquícios de comunidades semi-nómadas, dedicadas ao artesanato e ao consumo, mais ou menos regular, de drogas, o vício persistente que haveria de prejudicar continuamente a reputação do movimento Hippy.
Talvez a maior riqueza a que os Hippies tenham ficado associados tenha sido a música, a dos anos 60, cujo hino se materializou na voz inconfundível de Scott Mckenzie, naquela bela canção «If You’re Going to San Francisco» .
No meio de tanta produção musical, desde o rock ao country, ao folk, até aos blues, luziram, de facto, em número considerável, verdadeiras pepitas de ouro do mundo da canção, que, passados cerca de 40 anos, continuam a agradar a uma imensa faixa de público, dos mais velhos, às gerações mais novas, confirmando o valor das composições, na sua resistência à usura do tempo, inquestionável supremo juiz nestas matérias.
Uma plêiade de compositores, músicos e poetas, conseguiu criar canções que ainda hoje emocionam vivamente quem as ouve. Explicar a razão desta exuberante confluência de valores, na música dos anos 60, torna-se bastante difícil, apesar das inúmeras tentativas que têm sido empreendidas por competentes sociólogos em todo o mundo.
Em Portugal, essa onda de criatividade musical também nos tocou, por essa altura, com idêntico florescimento. Dos cafés das Avenidas Novas de Lisboa, em especial dos das Avenidas de Roma e Estados Unidos da América, então frenéticos viveiros de agitação juvenil, surdiam os conjuntos, os cantores que depois se tornariam conhecidos, entre outros, os Sheiks, os Gatos Negros, os Playboys, de onde saíriam o Fernando Gomes, o Paulo de Carvalho, o Fernando Tordo, o Carlos Mendes e muitos, muitos outros, de menor nomeada, mas igualmente muito activos, cheios de força interventiva, sem dúvida dotados significativo talento.
Nos cafés se teciam os sonhos e os projectos, se congregavam ânimos, se compunham os grupos, se incentivava a imaginação das novas gerações. Só a droga e o seu consumo, fenómeno entretanto aparecido como coisa corrente entre a juventude, haveria de causar fortes motivos de apreensão entre as famílias, professores e demais responsáveis pela orientação técnica, escolar e cívica dessa irrequieta mocidade.
A existência dos cafés de bairro conferia uma enorme animação às cidades, numa época que ainda não experimentara a novidade das grandes superfícies. Em Lisboa, o Tutti-Mundi, na Avenida de Roma, o Apolo 70, no Campo Pequeno, o Imavis, na Avenida Fontes Pereira de Melo, o Galeto, na Avenida da República devem ter sido os primeiros e os mais concorridos espaços desse novo tipo de estabelecimentos comerciais, apesar de tudo, ainda modestos na sua dimensão, ainda compatíveis com os antigos ambientes, com os cafés e os bares de então, mas já impondo um outro modo, um outro estilo de convívio entre a juventude, sobretudo.
Hoje, ao percorrer variadas ruas e avenidas desta Lisboa do início do século XXI, senti saudades desse tempo, do que vivi e daquele de que ouvi falar às gerações que antecederam a minha, desse ambiente mais acolhedor, mais à medida humana, à nossa medida de seres urbanos, perdidos na indiferença e na hostilidade das cidades de ruas desertas, abandonadas do convívio das gentes que, adulterado, se transferiu para as modernas catedrais de consumo, os apinhados Centros Comerciais.
Presumo que ainda não tenhamos avaliado bem os efeitos de toda esta mutação social, aparentemente tão festejada, por cómoda e eficiente, na satisfação das nossas necessidades de consumo, mas que encerra em si um alto preço a pagar, traduzido numa crescente desumanização dos espaços que habitamos.
Na desertificação urbana, que se acelera a partir dos fins-de-tarde, já esses efeitos são bem visíveis, a ponto de nem se poder tomar um café, sequer, comprar um jornal que seja, fora desses congestionados centros comerciais.
É isto que desejamos para o futuro das nossas cidades ?
AV_Lisboa, 10 de Dezembro de 2006
Quase não se encontrava ninguém nas ruas. Raros estabelecimentos abertos, mesmo nesta época do ano, comercial por excelência, muito longe do espírito daquele que lhe deu motivo. Na verdade, a figura de Jesus Cristo, desde há muito que se tornou em mero ícone, igual a muitos outros, ao lado do de Marx, Guevara ou Fidel, por exemplo, desligado já, por completo, do seu sentido original e profundo.
A última vez que ainda terá movido multidões, jovens sobretudo, foi nos anos 60 do século XX, quando os Hippies da Califórnia o adoptaram como seu símbolo, liberal e condescendente com ousados usos e costumes, complacente ou até cúmplice com as práticas dessa mocidade, então irreverente, que recusava o Sistema, o Establishement, ao mesmo tempo que preconizava o regresso à simplicidade da Natureza.
Dessa imensa corrente espiritual ou mística, que depois se espalhou pelo mundo inteiro, com particular acolhimento aqui na Europa, restam hoje escassos resquícios de comunidades semi-nómadas, dedicadas ao artesanato e ao consumo, mais ou menos regular, de drogas, o vício persistente que haveria de prejudicar continuamente a reputação do movimento Hippy.
Talvez a maior riqueza a que os Hippies tenham ficado associados tenha sido a música, a dos anos 60, cujo hino se materializou na voz inconfundível de Scott Mckenzie, naquela bela canção «If You’re Going to San Francisco» .
No meio de tanta produção musical, desde o rock ao country, ao folk, até aos blues, luziram, de facto, em número considerável, verdadeiras pepitas de ouro do mundo da canção, que, passados cerca de 40 anos, continuam a agradar a uma imensa faixa de público, dos mais velhos, às gerações mais novas, confirmando o valor das composições, na sua resistência à usura do tempo, inquestionável supremo juiz nestas matérias.
Uma plêiade de compositores, músicos e poetas, conseguiu criar canções que ainda hoje emocionam vivamente quem as ouve. Explicar a razão desta exuberante confluência de valores, na música dos anos 60, torna-se bastante difícil, apesar das inúmeras tentativas que têm sido empreendidas por competentes sociólogos em todo o mundo.
Em Portugal, essa onda de criatividade musical também nos tocou, por essa altura, com idêntico florescimento. Dos cafés das Avenidas Novas de Lisboa, em especial dos das Avenidas de Roma e Estados Unidos da América, então frenéticos viveiros de agitação juvenil, surdiam os conjuntos, os cantores que depois se tornariam conhecidos, entre outros, os Sheiks, os Gatos Negros, os Playboys, de onde saíriam o Fernando Gomes, o Paulo de Carvalho, o Fernando Tordo, o Carlos Mendes e muitos, muitos outros, de menor nomeada, mas igualmente muito activos, cheios de força interventiva, sem dúvida dotados significativo talento.
Nos cafés se teciam os sonhos e os projectos, se congregavam ânimos, se compunham os grupos, se incentivava a imaginação das novas gerações. Só a droga e o seu consumo, fenómeno entretanto aparecido como coisa corrente entre a juventude, haveria de causar fortes motivos de apreensão entre as famílias, professores e demais responsáveis pela orientação técnica, escolar e cívica dessa irrequieta mocidade.
A existência dos cafés de bairro conferia uma enorme animação às cidades, numa época que ainda não experimentara a novidade das grandes superfícies. Em Lisboa, o Tutti-Mundi, na Avenida de Roma, o Apolo 70, no Campo Pequeno, o Imavis, na Avenida Fontes Pereira de Melo, o Galeto, na Avenida da República devem ter sido os primeiros e os mais concorridos espaços desse novo tipo de estabelecimentos comerciais, apesar de tudo, ainda modestos na sua dimensão, ainda compatíveis com os antigos ambientes, com os cafés e os bares de então, mas já impondo um outro modo, um outro estilo de convívio entre a juventude, sobretudo.
Hoje, ao percorrer variadas ruas e avenidas desta Lisboa do início do século XXI, senti saudades desse tempo, do que vivi e daquele de que ouvi falar às gerações que antecederam a minha, desse ambiente mais acolhedor, mais à medida humana, à nossa medida de seres urbanos, perdidos na indiferença e na hostilidade das cidades de ruas desertas, abandonadas do convívio das gentes que, adulterado, se transferiu para as modernas catedrais de consumo, os apinhados Centros Comerciais.
Presumo que ainda não tenhamos avaliado bem os efeitos de toda esta mutação social, aparentemente tão festejada, por cómoda e eficiente, na satisfação das nossas necessidades de consumo, mas que encerra em si um alto preço a pagar, traduzido numa crescente desumanização dos espaços que habitamos.
Na desertificação urbana, que se acelera a partir dos fins-de-tarde, já esses efeitos são bem visíveis, a ponto de nem se poder tomar um café, sequer, comprar um jornal que seja, fora desses congestionados centros comerciais.
É isto que desejamos para o futuro das nossas cidades ?
AV_Lisboa, 10 de Dezembro de 2006
Comments:
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Caro António, seria importante perceber por que razão (ou razões) se observa um fenómeno oposto, mesmo aqui lado, em Espanha. Serão as diferenças culturais assim tão grandes? Serão os efeitos de um urbanismo autista, que já vem dos tempos do Marquês de Pombal? Ou, mais prosaicamente, é a (fraca) economia portuguesa a falar mais alto!
No próximo fim-de-semana vou a Espanha, a uma pequena cidade perto da raia, terra muito ligada ao nome Lusitânia: Mérida. E sei o que vou encontrar, desde sexta a domingo. Vida, muita vida. E, acima de tudo, uma alegria enorme, e um espírito de comunidade fortíssimo.
No próximo fim-de-semana vou a Espanha, a uma pequena cidade perto da raia, terra muito ligada ao nome Lusitânia: Mérida. E sei o que vou encontrar, desde sexta a domingo. Vida, muita vida. E, acima de tudo, uma alegria enorme, e um espírito de comunidade fortíssimo.
Interessante artigo, ao qual não tenho nada a acrescentar. Mas fiquei a meditar no que disse o comentador "cmf". Não porque tem as iniciais da Câmara Municipal do Funchal, mas porque eu próprio verifiquei a diferença entre Portugal e Espanha. Lembro-me que, no "Meson de la Guitarra" de Madrid, junto à Praça Maior todos cantavam. E um amigo meu espanhol perguntou-me: Fernando, em Portugal também cantam nos restaurantes? Ao que eu respondi: lá, se alguém começar a cantar, chamam a polícia.
Já agora, quanto às referências musicais, marcou-me em especial uma canção. Chama-se "Turn, turn, turn" (To everything there is a season)e é de um grupo musical "The Byrds"
Já agora, quanto às referências musicais, marcou-me em especial uma canção. Chama-se "Turn, turn, turn" (To everything there is a season)e é de um grupo musical "The Byrds"
Prezado Sr. António,
sua prosa é clara e o fio da meada muito bem traçado, se me é dado avaliar. A capital dos portugueses (e também capital espiritual de muitas outras gentes), segundo seu texto, está a se esvaziar de público, que acorre preferencialmente aos centros comerciais. Aqui na América do Sul (sou brasileiro) esse esvaziamento também ocorre, curiosamente, a exemplo dos ibéricos, mais do lado brasileiro do que do lado de língua espanhola. Oxalá se reverta a tendência pois, concordo com sua avaliação, é o burburinho das ruas e calçadas que dá dimensão humana às nossas urbes. Saudações muito cordiais!
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sua prosa é clara e o fio da meada muito bem traçado, se me é dado avaliar. A capital dos portugueses (e também capital espiritual de muitas outras gentes), segundo seu texto, está a se esvaziar de público, que acorre preferencialmente aos centros comerciais. Aqui na América do Sul (sou brasileiro) esse esvaziamento também ocorre, curiosamente, a exemplo dos ibéricos, mais do lado brasileiro do que do lado de língua espanhola. Oxalá se reverta a tendência pois, concordo com sua avaliação, é o burburinho das ruas e calçadas que dá dimensão humana às nossas urbes. Saudações muito cordiais!
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